Por Nomes Científicos + Curta e Acompanhe
Faça um teste. Pronuncie em voz alta as seguintes palavras: circuito, muito, fortuito, gratuito, intuito.
Com as mesmas quatro letras finais das demais, qual foi a única que você pronunciou com o <u> nasalado?
Muito curioso, não? (Fora isso, espero que tenha pronunciado /gratúito/ e não /gratuíto/.)
A nasalização é uma grande característica da língua portuguesa – o que dificulta demais a vida dos hispanofalantes que querem aprender nosso idioma. Os colombianos que conheci penavam para pedir um pão em português.
Nossa língua tem uma quedinha histórica pelos sons nasais. No português antigo, ‘mae’ rimava com pai (ou pae), o que facilitava muito ao filho fazer poesia no Dia das Mães. Com o tempo, ‘mae’ sofreu nasalização, virando mãe, e tivemos que pôr um til para indicar que o som é nasal.
A palavra sim é ‘sí/sì’ em asturiano, catalão, galego, italiano, românico e espanhol. (Os franceses têm ‘si’, mas preferem usar o ‘oui’.)
Adivinha qual língua descendente do latim pôs um ‘m’ na parada? O nasalador português! Si, si, si.
Até hoje, o fenômeno da nasalização nos rodeia. Não é difícil escutar falarem /mortandela, indiota/ ou o advogado Paloma xingar os criminosos de /bandindinho/.
Tem até uma boa quantidade de brasileiros registrados como Rainmundo.
O muito é a única palavra da língua portuguesa em que o ‘u’ tem som de /ũ/ sem ter as letras ‘m’ ou ‘n’ depois. Faz sentido nasalizar a fala em ‘bumbo’ (/bũbo/) e ‘mundo’ (/mũdo/), mas quem botou essa nasalidade no ‘u’ de muito?
O latim ‘multus’ virou ‘muito’ em português e não era nasal antigamente. No século XVI, por exemplo, Camões rimou ‘muito’ com ‘fruito’ (fruto), mostrando que a pronuncia era a mesma de circuito. Mas, com o tempo, a letra ‘m’, de som nasal, foi influenciando a pronúncia do ‘u’.
A pergunta não é bem “por que tem esse som nasal?”, já que isso é uma particularidade da língua portuguesa, mas “por que tiraram o símbolo de nasalidade?”.
Em textos do século XVIII e XIX, o comum era se escrever ‘mũito, mũyto, mũi, mũy’. Até ‘munto’ aparecia muito.
Também não era estranho encontrar um ‘muinto’.
Assim, quem mandou aquela mensagem luminosa para a Karina, ali da figura, pode dizer que não errou a palavra, apenas quis ser retrô (ou ‘vintage’, que está mais na moda) para parecer mais romântico.
Indo para o século XX, mũito ainda resistia, mas o seu uso foi naturalmente diminuindo até que a Reforma Ortográfica Brasileira o aboliu de vez em 1943.
Muitos gramáticos julgaram desnecessário o til nesse caso, que causava uma “deselegância” na escrita. Além disso, alguns poucos dialetos não pronunciam esse ‘u’ anasalado. Se fosse mantido, mũito seria a única palavra da língua portuguesa com til sobre o ‘u’. Ah, eu curtiria.
Bom, sobretudo, desejo muito que a Karina não se incomode tanto com esse deslize ortográfico e volte para quem muito a ama.
Clarice Lispector já dizia: “Se eu errar, que seja por muito, por amar demais”.
Fonte: Nomes Científicos.
Referência: ‘Por que escrevemos ‘muito’ e falamos ‘muinto’’, de Sérgio Rodrigues, 2010.
Sugestão: Bernardo Zolet.